Wednesday, December 30, 2009

OS SAPATOS DE CAMURÇA

OS SAPATOS DE CAMURÇA


Se eu fosse Elvis Presley, cantava-lhes esta história sobre os meus sapatos de camurça, que me serviram tão bem durante doze anos. Gostei deles pelo menos tanto quanto Elvis dos dele na sua canção "Blue Suede Shoes". Os meus eram sapatinhos até os tornozelos, prateado cinzentos, suaves e confortáveis. Chamávamo-los "spencers" ou "sapatos dos cavadores de ouro". Comprei-os durante o serviço militar na cooperativa de sapaterios inválidos da cidade, quando estava para voltar à vida civil depois de um ano de serviço obrigatório. De facto, eram bem baratos, mas de boa qualidade, feitos à mão - e é também este o tema desta história.
É horrível viajar num país que tem dificuldades para sair da Idade Média, como por exemplo a Índia. Mas é ainda pior viajar num país que voltou à Idade Média devido às suas guerras civis fratricidas, é o caso da Geórgia. O nosso grupo de escritores encontrou o país, que era o oásis da abundância e do excesso, na pobreza da era socialista, num estado de decomposição e apatia totais. O país ficou paralizado. Imaginem por exemplo um camião na estrada. No seu tanque de gasolina exterior havia tanta argila que tinha brotado um canteiro de relva nela. As janelas do autocarro que transportava o nosso grupo de escritores estavam crivadas por balas. Os vidros das viaturas quebrados ou crivados por balas (e notámos muitíssimos) não são consertados neste país, não há dinheiro. A nossa conferência de literatura foi uma das aventuras mais loucas que já vivi num acontecimento deste tipo. Chegámos de todos os países da Europa Central e de Leste graças ao apoio da Open Society Fund mas aí é que as fontes financeiras oficiais acabaram. Durante a conferência ficámos com a impressão que os nossos jovens colegas, os organizadores georgianos da conferência, recusavam qualquer apoio do estado (e um deles era o ex-ministro da cultura do governo antecedente!). Contavam sobretudo com o apoio financeiro dos amigos. Uma considerável parte do forte círculo de amigos, tão típico na Geórgia, foi representada (delicadamente dito) por pessoas ligadas ao mercado negro. O seu apoio à literatura era digno de admiração, mas muito (mais uma vez delicadamente dito) especial. Todos os dias vinha um carro de luxo e a sua tripulação entragava-nos uma caixa de uísque e pacotes de cigarros Marlboro. Aparentemente supunham que eram os combustíveis básicos das nossas discussões e actividades literárias. Tratava-se de um acontecimento semi-oficial, semi-privado e tive que admitir que a Geórgia era provavalmente o único país do mundo onde a máfia local dava tanta importância à literatura. Pelo carácter deste apoio podem presupor que o programa da nossa conferência era imprevisível. Às vezes os organizadores georgianos abandonavam o grupo e nós faziamos os possíveis para cumprir o programa, e na incerteza, esperávamos para ver o que aconteceria a seguir. No terceiro dia da confêrencia, encontrámo-nos numa excursão numa parte do país no cu de Judas. Em estradas horríveis que passavam pelas montanhas escarpadas sem saber o nosso destino. O nosso motorista ignorou as cancelas ocupadas pela milícia armada e só decidiu parar quando perguntei qual era a razão para estarem ali. Os milicianos com metralhadoras em punho explicaram-nos com boa vontade que as cancelas delimitavam as partes da estrada que se encontravam nas mãos da guerrilha local (nem sequer sabiamos que na Geórgia havia uma revolta!) mas de dia não iriam incomodar-nos. Tinha a impressão que mesmo se os rebeldes nos fizessem parar, o nosso motorista iria conhecê-los pelos nomes. Passámos pelas cancelas evitando os buracos nas estradas, mais numerosos que varicela em fase avançada, não dava para avançar mais que cinquenta metros em linha recta. A nossa viagem terminou de repente e sem aviso numa pequena cidade. Os organizadores deixaram-nos e foram tratar de alguns assuntos.
Tirar fotografias é a única actividade para acalmar os nervos de um estrangeiro enquanto espera durante o dia numa praça de uma cidade desconhecida. Tirámos as nossas pequenas máquinas fotográficas automáticas de turistas e crendo que tínhamos uma actividade útil para passar o tempo, começamos a tirar fotografias. Uma barraca chamou a nossa atenção, era uma tenda de madeira com a inscrição "Remont obuvi". Era uma oficina de sapateiro. A barraca em si não era tão interessante como a menina e o cachorro que se encontravam à porta. Ambos sujos e curiosos na sua idade infantil, olhando para nós. Sem dúvida uma fotografia engraçada. Depois de termos tirado fotografias, ouvimos de repente uma voz russa com sotaque georgiano: "Onde está o eslovaco?!"
Esta pergunta é um dos mistérios que vivi e cuja explicação nunca chegarei a saber. De facto, é um verdadeiro mistério, a razão pela qual o desconhecido local me escolheu a mim e como é que soube que eu era eslovaco. Para saber a explicação, fui ter com ele com muito prazer.
Era um homem como os que se podem encontrar na Geórgia, bem como na Índia ou no México. Passam a sua vida em grupos de amigos nas ruas das cidades e aldeias, debatem, bebem chá e observam meticulosamente tudo o que acontece à sua volta. Quando se passar pela rua “deles“, o melhor é cumprimentar respeitosamente toda a gente. À primeira vista não têm um aspecto assustador, mas são eles que influenciam as opiniões das comunidades das ruas. Somos imediatamente avaliados e se não gostam de nós, o melhor é fugir rapidamente. A pior coisa que pode acontecer é precisar de alguma coisa deles ou deles depender de alguma forma. Esta camada das nações pobres representa a mais numerosa base do estado. Suponho, que produzem pouco, mas mesmo assim é aconselhável entendermo-nos bem com eles. Por esta razão a minha conversa com o homem desconhecido começou do pior modo possível. O homem aproximou-se de mim, olhou-me directamente nos olhos e perguntou em voz alta e provocadora:
“Porque é que estás a tirar fotografias de um inválido?!“
Estava metido num sarilho. Na barraca com a inscrição “Remont obuvi“ provavelmente trabalhava um inválido. É muito comum neste ofício. Não o tinha notado, não sabia este facto, mas isso não me podia valer de desculpa. O homem desconhecido tinha a certeza absoluta que tinha o direito de dar uma lição ao estrangeiro e sabia tal como eu, que podia contar com a soliedaridade dos seus amigos da rua. Inválidos e crianças são intocáveis em todos os países. Ai dos estrangeiros que cometam um erro. E eu tinha cometido um (embora sem saber).
Como é de costume nestas situações, os que me deviam ter ajudado, observavam este inesperado teatro silenciosamente à espera do resultado. Os amigos do desconhecido já tinham formado um círculo à nossa volta e escutavam. Cada palavra era importante e eu sabia que podia falar de tudo, excepto do inválido. Isso daria a oportunidade ao homem para dar uma lição, que já tinha preparado, ao estrangeiro arogante, presunçoso e insensível.
“Sabe, caro amigo,“ comecei com cuidado. Na tentativa desesperada de pensar em algo olhei para os meus sapatos, os meus queridos sapatos de camurça, e foi nesse momento que a resposta salvadora me ocorreu. “Tirei a fotografia da sua “Remont obuvi“ porque na minha terra já não há sapateiros.“
“A sério?!“ o homem olhou para mim surpreendido e um pouco desconfiado. Sentia que estávamos a entrar num tema desconhecido e não quis desistir do seu. “A sério, sim! Imagine, no nosso país produzem sapatos de péssima qualidade, nem vale a pena consertá-los. São todos em plástico. Pomo-nos no lixo, quando estão estragados.“
“Ai é?“ o homem ficou encantado. Sempre agrada a estes representantes da opinião local saber alguma coisa de um estrangeiro que lhes dá a sensação de superioridade. Nestes momentos tornam-se benévolos. “A situação no vosso país não deve ser nada boa...“
“É verdade,“ afirmei com muito prazer.
“Onde é que este mundo irá parar,“ o homem continuou a conversa, mas depois, não querendo desistir da possível discussão, voltou ao tom moralizador. “E se tiras fotografias a uma barraca dessas, porque é que não tiras fotografia a um lugar bonito?!“
Indicou a praça em nossa volta onde não havia nada de bonito. Graças ao seu gesto reparei que o grupo dos espectadores, já aborrecido, começava a dispersar. Já tinha ganho, agora era só continuar com os lisangeios: “Quero poupar o filme para as vossas belas montanhas.“
“Ah, sim,“ concordou o homem, “as nossas belas montanhas“. Observou as montanhas distantes com atenção para saber se continuavam tão belas como sempre e depois disse: “Moro aqui perto, anda, vamos tomar vodka...“Quando voltei para casa, com a ênfase heróica, que vem sempre depois do grande medo e final feliz, contei a história à minha esposa. Ela não achou a história, agora já divertida, interessante, mas foi o estado dos meus sapatos de camurça que lhe chamou a atenção.
“Há uma eternidade que usas esses sapatos horríveis! Devias comprar uns novos!“
Nesse momento estava a descalçá-los, e aborrecido, peguei neles:
“Sapatos novos?! Em vez deste último exemplo de honesto trabalho manual indestrutível?!“
Coloquei os sapatos em frente dos olhos da minha esposa para provar o que acabava de dizer. Ela abanou a cabeça omnisciente e antes de me deixar com as minhas ingénuas opiniões disse “Talvez devesses observar melhor os teus sapatos indestrutíveis.“ Olhei para os meus sapatos indestrutíveis e pensei que iria ter um infarto. As solas estavam completamente gastas. Já deviam estar neste estado fatal quando, em frente da “Remont obuvi“ na Geórgia, “lutava“ verbalmente com o homem desconhecido. Mas não desisti. No sapateiro do nosso bairro mandaram-me embora.
“Já não fazemos este tipo de consertos. Consertamos apenas sapatos que se possam colar ou coser. Pode tentar no centro.“
Tentei no centro. Fui a vários sapateiros mas sem êxito. No último foram muito pacientes comigo. A senhora do balcão levou os sapatos e voltou com eles e com um velho sapateiro. O sapateiro pegou nos sapatos, olhou para as solas gastas e anuiu.
“Precisava de tirar estas solas e colocar umas novas. Mas isso já não se faz. Há alguns vinte anos mandaram-nos queimar as formas. O plano socialista do nosso país consistia em produzir tantos sapatos que o conserto já não compensasse.“
Ainda me lembro desse plano futurístico, mas hoje em dia já vivemos no capitalismo. Ou não?
“Bons sapatos“ entregou-mos com pena, “já não se fazem aqui. E não há ninguém neste país que possa consertá-los. Talvez apenas...“
“Eu sei“, disse com conhecimento fatalista, “sei onde podiam consertá-los.“
Fui para casa e coloquei os meus queridos sapatos numa prateleira. Talvez um dia, quando voltar à Geórgia...


Transl. by Jana Marceliová

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